Através do eletrocardiograma (ECG), exame que avalia a atividade elétrica do coração por meio de eletrodos fixados na pele, é possível detectar o ritmo do coração e o número de batimentos por minuto. Mas é possível estimar a idade de uma pessoa apenas pela análise de seu ECG? É exatamente esta questão que procuraram responder os pesquisadores do projeto CODE (Clinical Outcomes in Digital Eletrocardiography), do IATS — instituição que tem a FUNDMED como interveniente administrativa —, em parceria com a Universidade de Uppsala, na Suécia, e a École Polytechnique Fédérale de Lausanne, na Suíça. O estudo, que utiliza métodos de inteligência artificial (IA), foi publicado recentemente na Nature Communications, uma das revistas científicas mais importantes no mundo. E sim, a resposta à pergunta é positiva: pode-se treinar uma rede neural artificial para estimar a idade da pessoa da qual se registrou o ECG. Este exame, relativamente simples e de fácil realização, foi desenvolvido há mais de 100 anos pelo cientista holandês Einthoven e é uma solução de fácil acesso para diagnosticar doenças cardíacas.
De acordo com o Prof. Antonio Luiz Pinho Ribeiro, pesquisador do IATS, vice-diretor do CIIA-Saúde e um dos autores do estudo, ao procurar estimar a idade das pessoas pelo seu ECG, os pesquisadores observaram que o algoritmo cumpria seu papel, mas apresentava um erro considerável, às vezes super ou subestimando a idade real da pessoa.
“Seguindo as pistas de outros estudos, que sugeriam que este erro não era ao acaso, conseguimos mostrar que a idade eletrocardiográfica, calculada pela inteligência artificial, comportava-se como um marcador da idade biológica do coração. Ou seja, a presença de fatores de risco para doenças cardíacas, como hipertensão, tabagismo ou diabetes, se relacionava a uma idade eletrocardiográfica pelo menos 8 anos maior do que a idade biológica. E mais importante: que pessoas com esta diferença de pelo menos 8 anos entre a idade eletrocardiográfica e cronológica – ou seja, que o ECG estimava a idade em ais que 8 anos em relação a idade real – tinham maior risco de morrer, quando acompanhada por muitos anos”, aponta Ribeiro.
Estudos prévios já tinham demonstrado que, através de novos métodos de redes neurais profundas, era possível reconhecer padrões e fazer o diagnóstico em diferentes exames, como em radiografias e em fotografia do fundo do olho, de forma automática e acurada. O mesmo grupo do projeto CODE havia demonstrado, em 2020, que um algoritmo de IA treinado apenas com ECGs de uma grande base de dados era capaz de fazer o diagnóstico de 6 tipos de alterações cardíacas com a mesma precisão do que médicos residentes e estudantes de medicina.
O estudo atual foi realizado nesta mesma base de ECGs, acumulada entre 2010 e 2017 pela Rede de Telessaúde de Minas Gerais, uma parceria de sete universidades mineiras que oferece o serviço de tele-ECG para mais que 1100 cidades brasileiras, realizando mais que 3000 exames ao dia. A base, que conta com mais que 1,5 milhões de pacientes com pelo menos um ECG, foi dividida em uma base de treino com 85% dos exames, para derivar e calibrar o algoritmo de cálculo da idade eletrocardiográfica, enquanto a base de 15% restante foi usada para se estudar os estudos de prognóstico. Aqueles com ECG-idade superior a 8 anos em relação à idade cronológica possuem um aumentado de morte em 79%, enquanto aqueles com ECG-idade inferior a 8 anos em relação à idade cronológica tinham um risco de morte 22% menor. Para confirmar esses resultados, o mesmo método foi aplicado em outras populações, como a coorte ELSA-Brasil, de servidores públicos (n = 14.236), e SaMi-Trop, de pacientes com doença de Chagas (n = 1.631). Os resultados obtidos nas amostras de validação foram semelhantes aos observados originalmente, confirmando que os resultados são robustos e têm potencial de ser usados na clínica.
Esforços adicionais foram feitos para entender o que significava a discrepância entre as idades eletrocardiográfica e cronológica. Repetindo-se as análises de sobrevida (que avaliam o impacto prognóstico) apenas no subgrupo de pessoas com ECG normal, os autores se surpreenderam ao observar que pessoas com ECG reportado como normal e idade eletrocardiográfica 8 anos maior que a idade cronológica ainda tinham um risco aumentado de morte, mesmo quando se ajustava a análise para sexo, idade e presença dos fatores de risco citados acima. Ou seja, o algoritmo estava encontrando alguma característica do ECG, associada a maior idade cardiovascular e maior risco de morte, que não observada pelo cardiologista, que tinha classificado o exame como normal. Uma análise adicional com pessoas de mesma idade cronológica, mas com ECGs com idade eletrocardiográfica discrepante confirmou que o olho humano não consegue reconhecer tal disparidade.
Os novos estudos ampliam as perspectivas de utilização da IA no ECG, um exame de baixo custo e disponível nos mais diferentes cenários de prática de saúde. Além do potencial de auxiliar no reconhecimento de anormalidades eletrocardiográficas que refletem doença cardíaca, o método pode permitir que o exame seja usado para predição do risco de morte, ou seja, com fins prognósticos.
“Hoje utilizamos escores de risco (questionários) de precisão relativamente baixas para, frente a uma pessoa que não é cardiopata, estimar o risco de eventos cardíacos no futuro. A utilização do ECG analisado pela IA poderia aprimorar a capacidade desses escores de prever novos eventos, de modo que aqueles com risco mais alto possam ser tradados de forma preventiva, fazendo que se viva mais e melhor”, argumenta Ribeiro.
Este é mais um capítulo na história da IA em saúde. No Brasil, os esforços de pesquisa nessa área têm se intensificado nos últimos anos. Um dos resultados disso foi a criação do Centro de Inovação em Inteligência Artificial para a Saúde (CIIA-Saúde), um dos seis novos Centros oriundos de chamada para a constituição de Centros de Pesquisas Aplicadas (CPAs) em Inteligência Artificial. Tendo em vista esses avanços e o envolvimentos dos pesquisadores do IATS com a temática, o Instituto estabeleceu, em 2021, um novo eixo de pesquisa voltado para a Inteligência Artificial para a saúde.
Sobre os autores do estudo:
Emilly M. Lima, Centro de Telessaúde do HC-UFMG e Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais
Antônio H. Ribeiro, Departamento de Ciência da Computação, Universidade Federal de Minas Gerais, e Departamento de Tecnologia da Informação, Uppsala University, Uppsala, Suécia
Gabriela M. M. Paixão, Centro de Telessaúde do HC-UFMG e Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais
Manoel Horta Ribeiro, École Polytechnique Fédérale de Lausanne, Lausanne, Suíça
Marcelo M. Pinto-Filho, Centro de Telessaúde HC-UFMG, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais
Paulo R. Gomes, Centro de Telessaúde do HC-UFMG e Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais
Derick M. Oliveira, Departamento de Ciência da Computação, Universidade Federal de Minas Gerais
Ester C. Sabino, Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Bruce B. Duncan, Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia e Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e IATS
Luana Giatti, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais
Sandhi M. Barreto, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais e IATS
Wagner Meira Jr., Departamento de Ciência da Computação, Universidade Federal de Minas Gerais
Thomas B. Schön, Departamento de Tecnologia da Informação, Uppsala University, Uppsala, Suécia
Antonio Luiz P. Ribeiro, Centro de Telessaúde do HC-UFMG e Faculdade de Medicina,Universidade Federal de Minas Gerais e IATS